segunda-feira, 1 de agosto de 2016

A longa caminhada até os dias de hoje

A longa caminhada até os dias de hoje
O grande número redondo está tão perto que os técnicos têm de reprogramar milhões de computadores. Se não forem reparados a tempo, eles vão simplesmente parar de funcionar quando 1999 virar 2000. O resto de nós pode dizer: e daí? Por que todo esse estardalhaço em torno do fim iminente do milênio? Afinal, não passa de um marco arbitrário. O padrão ocidental de contar os anos foi inventado no começo do século VT por um monge chamado Dionísio, o Pequeno. Foi ele quem decidiu que a era cristã começava com a circuncisão de Jesus, uma semana depois do Natal. Amparando a conjectura em sólida matemática, datou o evento de 1° de janeiro do que balizou de anno Domini Um, o primeiro ano do Senhor. Assim, o próximo milênio começa oficialmente em 2001. Os historiadores, no entanto, acreditam agora que a cirurgia sagrada aconteceu alguns anos antes da data estabelecida por Dionísio. Evidente que para os povos não cristãos tudo isso é discussão acadêmica. Em Israel, está-se no ano 5759, enquanto para os japoneses o ano atual é o Heisei 10. É costume no Japão zerar o calendário a cada imperador que sobe ao trono, dando origem a uma nova era. O atual imperador, Akihito, coroado em 1989, abriu a era Heisei, que significa "conquistando a paz".
O que há então de especial sobre um dois e três zeros aparecendo no calendário ocidental? Nada, talvez. Mas, como qualquer aniversário, este nos dá um bom pretexto para ver o que fizemos desde a celebração anterior. A distância pode ser aferida por estatística: a população do mundo aumentou de 300 milhões para 5,9 bilhões, a expectativa de vida, de 30 para 62 anos. Porém, mais notáveis são as mudanças no que esperamos da vida. Quando o milênio anterior chegava ao fim, alguns europeus previram o apocalipse. Peregrinos fizeram procissões de penitência, guerreiros bradaram juras de paz a multidões em êxtase. Mas, quando o ano 1001 chegou, milhões de pessoas não ficaram sequer sabendo, ou pouco se importaram. Poucos conseguiam ler seus próprios nomes, quanto mais um calendário. Comer era a preocupação mais premente. Apesar da melhoria do clima e de inovações na agricultura — a coalheira do cavalo, recém-chegada da China, e o arado de rodas —, as colheitas mal davam para o consumo. O sistema feudal, que forçava os camponeses a dividir a produção com seus senhores, tornava ainda mais difícil evitar a desnutrição.
Em comparação com os camponeses, presos por lei à terra de que não podiam ser donos, os moradores das cidades — comerciantes e artesãos, saltimbancos e ladrões — levavam uma vida de liberdade vertiginosa. Altas muralhas os protegiam contra ataques de bárbaros e de exércitos mercenários.
Uma mistura de pequenos reinos recém-saídos da caótica Era das Trevas que se instalou depois do saque de Roma pelos visigodos, em 410, a Europa era um lugar bem atrasado em 1001. Perdera-se boa parte da herança greco-romana de refinamento cultural e conhecimento tecnológico. A erudição confinava-se em alguns mosteiros esparsos. Embora os nobres e uma burguesia nascente começassem a ler, os livros eram escassos.
O mundo europeu e o islâmico absorviam ensinamentos da China, a sociedade mais bem organizada e tecnologicamente avançada do planeta. Na maioria das aldeias havia escola primária e um em cada vinte estudantes chegava ao ensino superior. A medicina chinesa — acupuntura e ervas medicinais — culminava o desenvolvimento de séculos. Poetas e pintores criavam uma arte que deixava tosca a do Ocidente. As oficinas chinesas produziam maravilhas: livros impressos., bússolas, bombas. Quando os europeus aprenderam enfim a fabricar tais coisas, talvez instruídos por mercadores árabes, houve repercussões em todos os continentes.
As informações fluíam devagar entre Europa e Ásia na aurora do milênio, mas entre muitos lugares do mundo simplesmente não havia contatos. O reino de Gana vivia o apogeu, com mercados transbordando de riquezas da África e escultores criando obras-primas em ouro, mas ninguém ao norte do Saara tomava conhecimento dele. No que agora é o México, os toltecas erguiam pirâmides enormes, mas ninguém a poucas semanas de caminhada sabia de sua existência, Leif Eriksson foi da Groenlândia à América do Norte, mas a notícia não saiu da Escandinávia. Ainda assim, as culturas espalhadas do mundo antigo compartilhavam uma característica essencial: fundavam-se todas firmemente na religião. O cirurgião hindu ou o navegante viking não ousariam erguer um dedo sem consultar seus deuses. Os hereges arriscavam-se à fogueira e os infiéis, à cimitarra islâmica.
Como saímos de um mundo como aquele para chegar ao nosso? As páginas seguintes são uma tentativa de reconstituir essa trajetória grandiosa. O que se vai ler e ver é o resultado de um trabalho monumental empreendido originalmente pela revista americana Life e reproduzido com exclusividade no Brasil por VEJA. Duas dezenas de jornalistas consultaram montanhas de livros e especialistas de quase todas as áreas do conhecimento para compilar a lista de uma centena de eventos e personagens que marcaram o milênio. Foram necessários meses de reuniões, às vezes tempestuosas, para se chegar à escolha final. Propositalmente, para aumentar o suspense da leitura, os eventos aparecem listados em ordem inversa de importância, de 100 até 1. Os critérios de escolha foram muitos e amplos. Levou-se em conta quantas pessoas um determinado acontecimento afetou. Que diferença ele fez na vida cotidiana dessas pessoas. Tal como os cálculos do calendário do monge Dionísio, o Pequeno, esse projeto (até mesmo sua publicação prematura) é um exercício arbitrário que pode provocar discussões tão acirradas quanto as que marcaram sua criação. Foi sempre assim com as grandes comemorações: quanto mais emocionante o tempo que se passou entre uma e outra, mais elas suscitam controvérsias. A viagem do ano 1001 até os nossos dias foi, sem dúvida, espetacular.

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Fonte:
Revista Veja - Edição Especial: Milênio - Os 100 fatos que mudaram o mundo do ano 1001 até hoje. Editora Abril. São Paulo, 2000, págs. 14-15.

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