A longa caminhada até os dias de hoje
O grande número
redondo está tão perto que os técnicos têm de reprogramar milhões de
computadores. Se não forem reparados a tempo, eles vão simplesmente parar de
funcionar quando 1999 virar 2000. O resto de nós pode dizer: e daí? Por que
todo esse estardalhaço em torno do fim iminente do milênio? Afinal, não passa
de um marco arbitrário. O padrão ocidental de contar os anos foi inventado no
começo do século VT por um monge chamado Dionísio, o Pequeno. Foi ele quem
decidiu que a era cristã começava com a circuncisão de Jesus, uma semana depois
do Natal. Amparando a conjectura em sólida matemática, datou o evento de 1° de
janeiro do que balizou de anno Domini Um,
o primeiro ano do Senhor. Assim, o próximo milênio começa oficialmente em 2001.
Os historiadores, no entanto, acreditam agora que a cirurgia sagrada aconteceu
alguns anos antes da data estabelecida por Dionísio. Evidente que para os povos
não cristãos tudo isso é discussão acadêmica. Em Israel, está-se no ano 5759,
enquanto para os japoneses o ano atual é o Heisei 10. É costume no Japão zerar
o calendário a cada imperador que sobe ao trono, dando origem a uma nova era. O
atual imperador, Akihito, coroado em 1989, abriu a era Heisei, que significa
"conquistando a paz".
O que há
então de especial sobre um dois e três zeros aparecendo no calendário
ocidental? Nada, talvez. Mas, como qualquer aniversário, este nos dá um bom
pretexto para ver o que fizemos desde a celebração anterior. A distância pode
ser aferida por estatística: a população do mundo aumentou de 300 milhões para
5,9 bilhões, a expectativa de vida, de 30 para 62 anos. Porém, mais notáveis
são as mudanças no que esperamos da vida. Quando o milênio anterior chegava ao
fim, alguns europeus previram o apocalipse. Peregrinos fizeram procissões de
penitência, guerreiros bradaram juras de paz a multidões em êxtase. Mas, quando
o ano 1001 chegou, milhões de pessoas não ficaram sequer sabendo, ou pouco se
importaram. Poucos conseguiam ler seus próprios nomes, quanto mais um
calendário. Comer era a preocupação mais premente. Apesar da melhoria do clima
e de inovações na agricultura — a coalheira do cavalo, recém-chegada da China,
e o arado de rodas —, as colheitas mal davam para o consumo. O sistema feudal,
que forçava os camponeses a dividir a produção com seus senhores, tornava ainda
mais difícil evitar a desnutrição.
Em
comparação com os camponeses, presos por lei à terra de que não podiam ser
donos, os moradores das cidades — comerciantes e artesãos, saltimbancos e
ladrões — levavam uma vida de liberdade vertiginosa. Altas muralhas os
protegiam contra ataques de bárbaros e de exércitos mercenários.
Uma mistura
de pequenos reinos recém-saídos da caótica Era das Trevas que se instalou
depois do saque de Roma pelos visigodos, em 410, a Europa era um lugar bem
atrasado em 1001. Perdera-se boa parte da herança greco-romana de refinamento
cultural e conhecimento tecnológico. A erudição confinava-se em alguns mosteiros
esparsos. Embora os nobres e uma burguesia nascente começassem a ler, os livros
eram escassos.
O mundo
europeu e o islâmico absorviam ensinamentos da China, a sociedade mais bem
organizada e tecnologicamente avançada do planeta. Na maioria das aldeias havia
escola primária e um em cada vinte estudantes chegava ao ensino superior. A
medicina chinesa — acupuntura e ervas medicinais — culminava o desenvolvimento
de séculos. Poetas e pintores criavam uma arte que deixava tosca a do Ocidente.
As oficinas chinesas produziam maravilhas: livros impressos., bússolas, bombas.
Quando os europeus aprenderam enfim a fabricar tais coisas, talvez instruídos
por mercadores árabes, houve repercussões em todos os continentes.
As
informações fluíam devagar entre Europa e Ásia na aurora do milênio, mas entre
muitos lugares do mundo simplesmente não havia contatos. O reino de Gana vivia
o apogeu, com mercados transbordando de riquezas da África e escultores criando
obras-primas em ouro, mas ninguém ao norte do Saara tomava conhecimento dele.
No que agora é o México, os toltecas erguiam pirâmides enormes, mas ninguém a
poucas semanas de caminhada sabia de sua existência, Leif Eriksson foi da
Groenlândia à América do Norte, mas a notícia não saiu da Escandinávia. Ainda
assim, as culturas espalhadas do mundo antigo compartilhavam uma característica
essencial: fundavam-se todas firmemente na religião. O cirurgião hindu ou o
navegante viking não ousariam erguer um dedo sem consultar seus deuses. Os
hereges arriscavam-se à fogueira e os infiéis, à cimitarra islâmica.
Como saímos
de um mundo como aquele para chegar ao nosso? As páginas seguintes são uma
tentativa de reconstituir essa trajetória grandiosa. O que se vai ler e ver é o
resultado de um trabalho monumental empreendido originalmente pela revista
americana Life e reproduzido com
exclusividade no Brasil por VEJA. Duas dezenas de jornalistas consultaram
montanhas de livros e especialistas de quase todas as áreas do conhecimento
para compilar a lista de uma centena de eventos e personagens que marcaram o milênio.
Foram necessários meses de reuniões, às vezes tempestuosas, para se chegar à
escolha final. Propositalmente, para aumentar o suspense da leitura, os eventos
aparecem listados em ordem inversa de importância, de 100 até 1. Os critérios
de escolha foram muitos e amplos. Levou-se em conta quantas pessoas um
determinado acontecimento afetou. Que diferença ele fez na vida cotidiana
dessas pessoas. Tal como os cálculos do calendário do monge Dionísio, o
Pequeno, esse projeto (até mesmo sua publicação prematura) é um exercício
arbitrário que pode provocar discussões tão acirradas quanto as que marcaram
sua criação. Foi sempre assim com as grandes comemorações: quanto mais
emocionante o tempo que se passou entre uma e outra, mais elas suscitam
controvérsias. A viagem do ano 1001 até os nossos dias foi, sem dúvida,
espetacular.
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Fonte:
Revista Veja - Edição Especial: Milênio - Os 100 fatos que mudaram o mundo do ano 1001 até hoje. Editora Abril. São Paulo, 2000, págs. 14-15.
Fonte:
Revista Veja - Edição Especial: Milênio - Os 100 fatos que mudaram o mundo do ano 1001 até hoje. Editora Abril. São Paulo, 2000, págs. 14-15.
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